Contos, reflexões, ensaios... tudo em prosa. Com um generoso toque de sentimentos.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Para quê?

Leana tragava um cigarro e uísque.

Lembrava-se de coisas, imaginava-as diferente. Mudava uma fala da sua memória, e acrescentava o que lhe convinha. Arrependia-se, na verdade. Bom que ela podia criar próprias falas, o problema era serem próprias, nunca antes ditas.

A brincadeira logo a cansou. Tomou-se a pensar nas conseqüências das falas há pouco trocadas. Daí que nada mais de alterações seriam feitas, já que nada havia acontecido para ser trocado.

Pensava de maneira realista, e dava-se por farta de pensar naquilo tudo.
Tomou-se, impaciente, a esperar.

Esperava pela presença de Raul para explicar-lhe e tirar-lhe da cabeça qualquer pensamento. Nenhum arrependimento, logo nenhuma troca e evidentemente também nenhuma conseqüência. Raul detinha esse nó que prendia seus pensamentos. Com certeza o amava.



Não sabia que o futuro era diferente do de todas suas especulações de segundos anteriores:

- Chegou tarde.

- Já está bêbada?

- Não. Fiquei a te esperar e estou a beber uma única dose. Onde estava?

- Eu nem ao menos deveria ter vindo.

- Se fosse tua vontade mudaria tudo, não é?



Raul conheceu a jovem em seu trabalho. Não era bonita, e nem bem vestida. Seu trabalho era precário, e de pouco reconhecimento. Sorriu à ela ao entregar o dinheiro, e o troco foi retribuído. Havia nitidamente se encantado. Levou-a a sua casa algumas semanas após o reconhecimento. Ela mostrava-se muito faladeira, e tinha um namorado. Mostrava-se, ainda, muito desinibida e sentiu-se à vontade ao sentar na poltrona, de pernas abertas. Ria a modo de ouvir-se de longe. Contou da existência de Leona, mas não exteriorizou nenhum sentimento. A jovem não demonstrou interesse algum, continuando a falar.

Seu namorado, Raul soube, era poeta. Estudava os Altos Estudos Políticos. Comentou, logo antes de Raul irritar-se e cortar o assunto com rispidez, que ele era ciumento e não poderia saber que ela havia ido ao apartamento.

Raul não pensava em Leana enquanto conversava com a jovem. Pensou depois, e não gostou. Mesmo que não houvessem estabelecido que deveriam ser fiés, Raul não gostava de não pensar em Leana. Não pensou em Leana ao fazer sexo com a jovem.



- Mudaria algumas coisas, sim.

- Pois eu teria feito tudo igual.

- Engula o teu orgulho. Não fez nada certo para orgulhar-se de algo.

- Não tem o direito de me dar ordens, me ofender e nem cobrar nada. Foi tu que começou com essa coisa toda.

- E nunca fora complicado pra tu entender. Aceitava sem nenhuma divergência.

- Pois houve. Contente-se com o que tem agora.

- E o que tenho agora?

- A mim. Como sempre.

- Acha que continua tudo igual?

- Não guardo mágoa alguma. E tu não tem motivo nenhum para ter.



Quando Raul contou a Leana da jovem ela interessou-se, quis conhecê-la. Fazia tempo que Leana quis conhecer um caso de Raul .Leana sempre respeitou os casos, e ela própria havia tido os seus. Não havia preocupações. Ela sabia que Raul não conseguiria deixá-la. Ainda não havia pensado na vida sem Raul, então nunca havia questionado se conseguiria ou não.

Interessou-se pelo tipo da moça. Gostaria de conversar com ela, não irei mentir-lhes: queria mostrar-se superior à jovem por algum tipo de prazer oculto. Gostava de conhecer os casos de Raul para mostrá-las como é mais interessante e o porquê de Raul manter somente à ela. Marcaram um jantar. A jovem sentiu-se assustadíssima com a idéia de conhecer a 'namorada' de seu atual amante:

- Come pato?

A jovem respondeu que sim.

- Espero que goste de pimenta, eu e Raul gostamos muito.

- Embora este tenha sido um hábito que adquiri por sua causa, Leana.

A jovem respondeu positivamente a questão da pimenta.

- É jovem... Estuda?

A jovem disse que só trabalhava, mas que gostaria de voltar aos estudos o mais rápido possível. Estudava com o namorado para ingressar à faculdade.

- E já tem algum curso em mente?

- O trabalho dela é bem desgastante. Creio que não haja tempo para pensar tão claramente sobre o assunto - Raul acabava de servir o vinho.

- Seu namorado estuda?

A jovem comentou sobre os estudos do namorado, e sua vida de poeta.

- E tu gosta dos poemas que ele escreve? São de que tipo?

A jovem disse que gostava.

- Falam sobre o quê?

Sobre a vida.

- Costuma ler outros poemas?

Não.

- Costuma conversar com seu namorado sobre seus poemas?

Não.

- Não se interessa por poesia?

Não muito. Preferia ler romances.

- Mudemos o assunto - Raul tentou proteger a jovem.

A jovem disse que gostaria de estudar fotografia.

- Leana é fotógrafa.

O poeta namorado da jovem havia ido em seu apartamento para mostrá-la seu novo poema. Irritou-se quando viu que ela não estava. Parou na calçada e esperou, impaciente. Depois de 5 minutos começou a andar para que ninguém mais percebesse sua frutração. Viu dois policiais vestidos de terno indo no apartamento, obviamente procurar por ela. Sentiu o rosto ficar quente, rasgou o poema e voltou para casa.

A jovem foi a casa de Leana para aprender a tirar fotos. O convite fora proposto pelo próprio Raul. Leana quis aproveitar a situação para saber quem era a jovem:
- A fotografia surge com o olhar. Você deve olhar tudo que vai estar na fotografia, e depois registrar.
Click. Começaram um ensaio simples, e a jovem começou a falar. Falava intensamente, e encantava. Leana perguntou sobre sua vida. Era pobre, família grande, irmãos problemáticos. Click. Vinha do interior da Boêmia, e estava em Praga trabalhando como caixa de supermercado. Não estudava, mas pretendia. Click.
Leana sentiu-se preenchida por dois sentimentos: pena e apreensão. Percebeu que a jovem era inocente, feia e desgraçada, porém era atraente de forma perigosa. Não havia vontade de magoá-la de nenhuma forma. Ninguém iria querer magoá-la.

Raul não via a jovem nem Leana há 4 anos. Um dia, a jovem apareceu em seu apartamento. Descobriu a morte de seu namorado, mas não mostrou-se sentida. Raul questionou-a sobre a última visita que lhe fora feita pela jovem, na qual ela havia dito que nunca mais iria ver Raul, pois era apaixonada por seu namorado. Na semana seguinte à despedida dos dois Leana e Raul tiveram a conversa que terminaria com seu relacionamento. Um determinado momento Leana começou a chorar, e Raul abraçou-a. Tentou passar a mão em seu rosto e corpo. A jovem mostrava-se evasiva, Raul aumentou a força, a jovem debatia-se, mas cedeu.

- Tenho que sair. Podemos marcar outro dia? Meu irmão irá ficar no meu apartamento, mas meu namorado não pode saber. O partido socialista está com desconfianças para com meu irmão, não há outro lugar pra ficar além da minha casa. Meu namorado sente ciúmes do meu irmão, ele sente ciúmes de tudo. Contar-lhe-ei a verdade: meu irmão pretende fugir do país. Por isso a perseguição. Não conte isso a ninguém, pelo amor de Deus. Ele fugirá ainda essa semana, ficará em meu apartamento para despistar o partido. Eu não concordo com o que ele está fazendo, mas não tenho como contrariá-lo. Meu namorado também quer que ele vá embora. Iremos tirar mais fotos? Estou animada com o progresso que obtive. Na semana que vem?

Leana subiu as escadas do prédio onde trabalhava seu antigo amigo de escola. Deixou sua identidade na entrada, haja vista a importância da edificação. Logo encontrou seu amigo:
- Tenho informação séria para você, mas preciso de discrição. Não quero que notifiquem de que fui eu quem denunciou. Há um casal de irmãos querendo fugir do país. São revolucionários e irão encontrar a resistência que permanece no exílio.

Leana não imaginava que uma semana depois iria ter a conversa com Raul, depois de brincar e deduzir a conversa. Ela não imaginava que a conversa a faria não ver mais Raul.

Memória

Desde cirança estabeleci sempre uma relação íntima com casas. Sempre gostei de passar, conseqüentemente, por caminhos de ruas onde haviam casas as quais eu gostava. E sempre gostei, mesmo, de passar em frente casas de meu agrado.
E olho-as, admirado, todos os dias.