Contos, reflexões, ensaios... tudo em prosa. Com um generoso toque de sentimentos.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Indagações 2 ou Solidão

A manhã estava bem fria. Levantei e olhei Pietro a trabalhar, na escrivaninha. Seu livro estava pra ser publicado, mas ele nunca satisfazia-se, sempre a revisá-lo incessantemente. Era cedo, portanto ele não devia ter dormido. De qualquer forma não me lembro de tê-lo ao meu lado na cama, aliás: faz tempo que não o lembro. Sua companhia já não me surpreende mais. O que dantes era-me necessário hoje me é indiferente.
Cumprimentei-o, costumeiramente com um beijo na testa:
- Não cansa de revisá-lo?
Não obtive resposta. Nosso carinho continua o mesmo, mas a fala não.
Sinto-me realmente sozinha. Marccelo foi-se há muito. Casou-se com Débora, uma desmiolada fanática religiosa. Aquela deve ter traçado-lhe pelo sexo, é a única possibilidade. Desde sempre, eu e Pietro, deixamos-lhe bem clara a inexistência de Deus. O próprio Marccelo havia afirmado, quando mais velho: 'Para mim Deus não passa de uma prestidigitação dialética'.
Casou-se na Igreja Católica. Eu e Pietro nos recusamos em ir a cerimônia, fomos apenas, hipócritas, na comemoração. Não havia nada que comemorar.
Logo depois largou a tese. Foi-se a trabalhar na Espanha, com o sogro. A mim não houve desgosto maior. O próprio Marccelo animava-se deveras com a tese. Dizia que a literatura e a filosofia não lhe preenchiam mais que outra coisa. Pelo visto o sexo preencheu-lhe mais.
- Giulia, gostaria que desse uma lida em um novo capítulo. Julgo pertinente que haja-o no livro.
- Irei banhar-me, logo depois lerei. Deixei-o em destaque.
Temos um apartamento grande em Roma repleto de espelhos e livros. No banheiro há o maior de todos os espelhos: minha vontade de quebrá-lo é imensa. Já não tenho mais o mesmo corpo de quando era jovem. As rugas e a flacidez tornam-me detestável. Pietro diz que continuo a mais bela, não obstante o espelho é o maior de todos os juízes. Implacável, inexorável.
Dispenso a banheira.

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